Exercícios de matar defunto
Ou: por que escrever um romance?
1.
O romance está morto, né. Ler um romance de cabo a rabo? Mas como, se basta pedir um resumo a alguma máquina de plágio, Inteligência Artificial (sic), ou conferir um vídeo de 60 segundos com qualquer pós-adolescente contando o enredo, ou melhor, lendo um resumo feito por alguma máquina de plágio etc. Nem isso. Até pouco tempo atrás, achava cafona ficar arrotando sobre romances lidos, mesmo por fingimento. Nem isso mais, nem isso: quem se importa? Ninguém no meu bairro sabe o que é um romance, eu incluído. Em todas as discussões pseudo-cult-desinteressadas, sou o primeiro a me orgulhar da ignorância a esse respeito, embora obrigado a ensinar definições quaisquer a meus alunos — esses, sim, candidamente desinteressados. Dar aula de literatura, vocês sabem, é pregar magia pra físicos.
2.
Desde o século XIX, já saiu toda sorte de obituário do romance. Nada mais justo para um troço fundado na retórica da crise. Dizia Lukács que a forma romanesca é a epopeia adaptada pra um mundo em frangalhos. Odisseu e seus equivalentes existiam com os valores, os deuses, a comunidade, a ordem do cosmos, digamos assim, tudo de certo modo unificado. O herói épico sabe quem é, qual é seu papel, e sua trajetória tem lá o seu sentido. Pra gente, não há esse centro nervoso. O coitado do personagem que passa a viver quando outro coitado resolve ler o romance desperta num universo fragmentado, confuso, onde os valores se contradizem e não há garantia de coisa alguma. Todo romance encena o drama do sujeito que procura um sentido no meio desse caos. Dizem, né. Daí a morte iminente: a gente tá sempre querendo celebrar o velório do romance para afirmar que encontramos a Verdade. Talvez, talvez. Este sou eu sendo quixotesco. Ou só espertinho (o lugar-comum tem o seu valor).
3.
Naturalmente, leio muitos romances, suscetível que sou à morbidez. Como não tenho estômago para dissecar cadáveres, fico com essa forma literária institucionalizada, cristalizada, anacrônica. Alguém pode argumentar que a literatura morre o tempo todo para viver de novo, ou que a própria noção de fim supõe o romance com essência fixa, imutável, sendo que tenho aqui um calhamaço da Toni Morrison provando que (…), ou já no tempo de James Joyce se entende como (…), ou ainda a Clarice Lispector com sua (…). Sei lá. A cada ano, os nossos cursos de Letras produzem mais ou menos 26 mil bakhtinianos declarando o romance como o único gênero ainda em processo de formação. A eterna tensão entre expansão e permanência. Entendo pouco de metamorfoses e continuidades. Morrerei jovem demais ou estúpido demais, e me contento em achar a leitura de um romance uma coisa assim bonita, um ato belo em sua exigência supérflua, como passear em videolocadoras, embora menos erótico do que ouvir um vinil.
Imperdoável mesmo é escrever.
4.
Escrevi dois romances entre setembro do ano passado e maio deste vagaroso 2025, ambos imperdoáveis, como sentenciou o poeta Hermes de Sousa Veras a respeito de um deles (diz que pretendia elogiar com um apoteótico imperdível). O primeiro escrevi por obrigação, culpa dum edital que ganhei por W.O., daí o prazo apertou e vamos que vamos. O segundo, Aranha Movediça, já em pré-venda no site da Moinhos (com desconto e frete grátis, hein, hein, hein), este foi por despeito. Professor que escreve romance é uma contradição performática. Durante o dia, ensino a identificar foco narrativo, o que já deveria ser punido, diga-se de passagem; à noite, estou ruminando diálogos ruins e tramas incompletas. Por quê? Peça milagre a um cadáver e você terá a resposta mais sincera do mundo: nada. Mas vamos nos exercitar. Pode ser que eu queira umas críticas literárias remexendo meus sacos de lixo, lives com três pessoas comentando a potência do texto, um clube do livro exausto de adjetivos, essas fundamentais desimportâncias que fazem palpitar nossas artérias de escritores. Ou, sendo mais claro, foi uma boa desculpa para adiar a escrita da minha tese. O romance, quando funciona, é um atraso. Deixa tudo fora do prazo. Famílias se despedaçam por culpa de romances. A linguagem demora para saber o que está dizendo, é anti-logística, é uma aula ruim. Por isso o sucesso de romances cada vez mais curtos. Agradeçam ao monopólio da Suzano e o obsceno preço do papel.
5.
É bem verdade que, mesmo nos romances mais experimentais, há uma ânsia de totalidade. Como diria o Alex Castro, certa pretensão cósmica. Estão lá as ruínas da epopeia, mesmo quando o romance assume a forma dum arquivo de fragmentos, quando se transforma numa barafunda de vozes polifônicas (meu caso), quando reproduz investigações e imita podcasts e relatórios (meu caso, também; péssima publicidade). O romance é poroso e incorpora tudo, híbrido, endividado, deformado. Sua forma é sempre a próxima. Por isso, escrever um romance é matar o romance. Entregar um romance é explodir o romance.
Conversar com um morto nos obriga a articular com mais cuidado, mas para que serve? Morto não responde e, como o tijolo, tampouco revida. Provavelmente, nunca terei nada a dizer sobre como escrever um romance, mas compreendo os meus porquês: enquanto escrevo, não sou útil. Escrever um romance é lidar com restos (memórias, traumas, ilusões, parentes), e isso me encanta mais que magia, Mr. Alan Moore.
Jabex:
Um podcast true crime investigando a misteriosa morte de um dos precursores do punk nos anos 80. Um homem assombrado pela culpa que resolve confrontar o passado. Uma cidade fantasma no sertão colonial. Essa teia de personagens, lugares e fantasmas compõe o romance ARANHA MOVEDIÇA, um thriller gótico-punk em pré-venda no site da Editora Moinhos (o frete é grátis e o desconto é de 20%).



