Por uma ética da assombração
Ou: porque toda história de amor é uma história de fantasmas
1.
É muito popular a expressão literatura do medo para descrever histórias de horror, o que me bota deprimido como o diabo. Odeio quando narrativas de horror são reduzidas ao esforço de causar medo; há muito mais abismos nessas bolhas de sabão que são os textos do que supõe a nossa vã teoria. É só isso? Sei lá. Aliás, sinto o mesmo em relação às histórias de amor: finais felizes ou dramas de separação não resumem tudo o que se movimenta por trás desse afeto.
Para além da rima fácil, horror e amor estão naquela mesma zona onde a gente pressente o desconhecido. O amor não escapa a uma lógica espectral. A fala apaixonada é feita de retornos, de ecos, de repetições de “eu te amo” que tentam sempre (e em vão) fixar um instante. Ou seja, o amor é uma recusa diante do tempo. Como o fantasma.
2.
A vaga introdução acima é desculpa para falar um pouco de horror e amor conforme mobilizados por uma série que adoro: A Maldição da Mansão Bly, de Mike Flanagan. Sei que Residência Hill é a queridinha de crítica e público, mas acho Mansão Bly mais simples, direta e, por isso, mais honesta. Baseada no clássico A Volta do Parafuso, de Henry James (bom, mas não extraordinário; sugiro também ver Os Inocentes, de 1962, com direção de Jack Clayton e roteiro de Truman Capote), a série muda elementos cruciais para fazer uma reflexão profunda sobre as paixões que nos movem e os fantasmas que se proliferam nessas distâncias.
Mansão Bly tem seus sustos e pavores, mas me parece focada na revelação lenta de como o amor pode congelar o sujeito no instante exato de sua perda. Vamos tomar como exemplo (e me perdoem o spoiler) a personagem de Hannah Grose (minha favorita), magistralmente interpretada por T'Nia Miller. Ela caminha pela cozinha, ouve um estouro de panela, pisca, e repentinamente se vê à beira do poço. O tempo dobra sobre si mesmo e revela que Hannah já está morta, existindo numa rotina que mascara essa verdade insuportável.
Em maior ou menor grau, todos temos nossos traumas, e o medo de revivê-los nos afasta e aproxima. Há quem ame para escapar, há quem ame para se aprisionar, há quem ame para se curar. A gente ama o que a gente cria do amor, resultado direto dos nossos temores e tremores, e nos assombra o contraste entre a pessoa amada e o fantasma que criamos. Afinal, o fantasma é a figura do adiamento, como diria Derrida, aparecendo para lembrar que algo faltou, falta e faltará.
O que me encanta em Mansão Bly é o modo como essas diferentes assombrações são abordadas por meio de uma forma estética que traduz a incerteza enraizada entre o desejo de fusão e o medo da perda. E a série faz isso enfatizando outros afetos nebulosos, como ternura, saudade, violência. E tédio.
3.
Há um romance imenso, póstumo e inacabado de David Foster Wallace chamado O rei pálido. A história se passa quase toda em salas e corredores da Receita Federal estadunidense em Illinois. Quem já trabalhou em escritório sabe como a rotina pode ser absolutamente sem sentido. Aliás, é por isso que o The Office estadunidense teve que se tornar uma fantasia juvenil para fazer sucesso. Mas voltando a O rei pálido (que, assim como The Office, conta com uma personagem chamada Meredith), vemos como aquelas pessoas foram parar naquele ambiente mortalmente alienante por uma combinação de comportamentos, circunstâncias financeiras, aleatoriedade e, claro, traumas. Debaixo de toneladas e toneladas de tédio, as personagens às vezes são visitadas por espectros, que podem ser partes reprimidas de sua personalidade ou fantasmas reais.
Talvez porque falando sobre aborrecimento, DFW faz o livro ser chatíssimo em alguns momentos. Mas é justamente em um dos capítulos mais maçantes, que descreve diretamente um dia normal no escritório (“Chris Fogle vira uma página. Howard Cardwell vira uma página. Ken Wax vira uma página. Matt Redgate vira uma página. Bruce Channing anexa um formulário a um arquivo. Ann Williams vira uma página.”), que se encontra a frase mais famosa de sua obra, já perto do fim: “toda história de amor é uma história de fantasmas” (no original: “Every love story is a ghost story.”).
A poesia parece uma recompensa, ou um erro, da mesma forma como as personagens interpretariam uma inconformidade nos formulários fiscais. Aquelas pessoas trancadas no escritório, indiferentes à vida que corre do lado de fora, são ainda capazes de amar. E isso as assombra mais do que viver como fantasmas.
Em Mansão Bly, os espíritos ficam presos nos arredores da casa, revivendo suas rotinas, alegrias e erros. Entediante, talvez não tanto quanto a contabilidade, mas entediante. Tanto a mansão quanto o escritório são espaços em que o tempo patina e transforma o passado em presença.
4.
Gosto de pensar que horror e amor são feitos da mesma matéria, dessa experiência estupidamente consciente de habitar o vazio, de sermos finitos, de estarmos sempre em busca de algo que não sabemos bem o que é. Talvez a função secreta do horror seja revelar que tudo isso é também uma espécie de assombração. Somos arquivos de fantasmas, e o amor é a classificação provisória que damos a um encontro qualquer que nos permite abrir as gavetas para abrigar o mais persistente dos espectros. Saber disso não nos salva nem condena, apenas nos dá a certeza que existir é assombrar e ser assombrado.
Quais fantasmas queremos acolher e quais precisamos exorcizar?
Penso que é inevitável olhar para trás, porque, afinal, as ruínas exercem todo esse fascínio na gente. Por outro lado, algo nos impele a avançar (o amor?), carregando assombros, mas também uma promessa de vida.
EXCELENTE. Perfeito. Primeiramente, também prefiro a mansão bly. No caso da dany, o fantasma dela era justamente o amor nao correspondido e o fantasma da heterosexualidade compulsória. Tudo naquela obra é perfeita e eu quero reassistir em breve. Sobre os outros conteúdos, não os conheço, mas com certeza irei ver. Gosto de terror que não seja focado em nudez e jumpscare !
Excelente texto, mano! A tua ligação para falar dessas proximidades entre sentimentos que parecem, a um primeiro momento, tal distantes foi certeira. Usar Mansão Bly foi covardia hahaha. Ler terror é um exercício de empatia!