Dias atrás, escrevi sobre a minha série favorita de todos os tempos, A Maldição da Mansão Bly, sem no entanto entrar no tema da casa mal-assombrada, ou do locus horribilis (alô, galera do gótico), o que teria causado furor se esta PALAVRA CANSADA tivesse alguma relevância. Como fã de horror, o assunto me é caro, a ponto de eu ter escrito um romance ainda não publicado cujo enredo gira em torno de um casarão (muito semelhante ao que aparece em Como nascem os fantasmas, da Verena Cavalcante).
Embora casarões arruinados, restos de mansões vitorianas e sorumbáticos castelos funcionem muito bem na ficção, pois remetem ao poder e às suas vicissitudes, os casos (mais ou menos) documentados de perturbações espirituais não costumam se dar em lugares chamativos ou notoriamente bizarros. As verdadeiras casas mal-assombradas não se distinguem por nada de particularmente horripilante. Pelo contrário, são comuns, seguindo o padrão da vizinhança: estreitas, na periferia; cafonas, nos bairros de novos-ricos; esquecidas, nas áreas da cidade devoradas pela especulação imobiliária. Mas, em seu interior, as portas se abrem sozinhas, ruídos de passos se fazem ouvir nos corredores, rajadas de vento frio cortam os quartos, e luzes aparecem repentinamente.
Essas são as principais manifestações, que, apagadas e repetidas, fazem com que se diga que uma casa é mal-assombrada. É bem difícil negá-las, embora certos espíritos céticos não queiram admitir senão aquilo que pessoalmente testemunham. Pode-se, evidentemente, achar pueril que as experiências via de regra se dêem no alto da madrugada ou nas horas abertas — e, sobretudo, que sejam inevitavelmente solitárias. De qualquer forma, são detalhes; vocês bem sabem que fantasmas são criaturas recalcadas e por isso dadas a dramalhões.
De qualquer forma, precisamos de casas para sonhar e para reter nossas lembranças (além de gavetas, precisamos de muitas gavetas e muitos cantos e porões ou sótãos ou quintais para as tralhas, diria Bachelard). Daí que o assombro é um modo de memória que se materializa no espaço mais comum do mundo, onde esperamos encontrar abrigo, naquilo que a gente reconhece como familiar, naquela imagem de Jesus Cristo em baixo relevo, lembram?, que nos acompanha com os olhos muito azuis, nos pisos de caquinhos na entrada, nos indestrutíveis pratos de duralex, nos cobogós, nas imperdoáveis roupinhas para tampas de vaso sanitário ou filtros de barro. São essas coisas que absorvem e devolvem certas vibrações anímicas, vamos chamar assim, para não dizer forças fluídicas ou espíritos.
A matéria ordinária da casa é fundamental ao conceito da assombração, ao menos se a gente levar em conta aquele texto famoso do Freud, Das Unheimliche: ficamos inquietos porque o doméstico revela algo reprimido. O que chamamos de casa é um espaço potencialmente assombrado por lembranças e desejos e frustrações. Em outras palavras, pelo tempo. Por trás das portas fechadas de casas de família, ergue-se o reino do gótico, escreveu Lucie Armitt, com todas as suas violências e silêncios.
Mas a própria arquitetura de certo modo nos lega o fantasma. As paredes, os muros, o teto, a caixa que construímos para habitar, não lhes parece uma coisa assim um tantinho mórbida? Criamos a criatura para invadi-la. Somos parasitas de um corpo edificado, e penso que recebemos de volta as angústias de outras eras.
Casas que respiram aparecem a torto e a direito em histórias de horror. Às vezes, por meio de agentes externos, como os fungos em Gótico Mexicano, da Silvia Moreno-Garcia (não poderia deixar de ser um casarão colonial), ou as ressentidas paredes da casa de Cupim, da Layla Martinéz, aquele “monte de tijolos e imúndicie”, que “se lança sobre quem quer que atravessa a porta e lhe retorce as tripas até deixá-lo sem fôlego”.
Há uma certa reciprocidade parasitária entre morador e moradia. No meu conto favorito de Julio Cortázar, Casa tomada, o casal de irmãos acredita viver numa construção estável, nos moldes da tradição burguesa portenha: uma casa espaçosa e antiga, em meio a recordações de uma frondosa árvore familiar da qual os dois são o derradeiro ramo. Nessa tradição burguesa, cabe a eles cuidar da moradia, mas uma leitura um pouco mais atenta revela que é a casa quem os cultiva, organismos simbióticos que mantêm a ordem e a limpeza. Quando os ruídos começam a ocupar aposentos, percebemos que a casa exala uma existência própria, empurrando os irmãos de um canto para outro:
Recordarei sempre nitidamente porque foi simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando em seu quarto, eram oito da noite e, de repente, eu me lembrei de levar a chaleira do mate ao fogo. Fui pelo corredor até chegar à porta de carvalho, que estava entreaberta, e dava a volta ao cotovelo que levava à cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre o tapete ou um abafado murmúrio de conversação. E o ouvi, também, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que vinha daquelas peças até a porta. Atirei-me contra a porta antes que fosse demasiado tarde, fechei-a violentamente, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava do nosso lado e, além disso, passei nessa porta o grande ferrolho para maior segurança.
Fui então à cozinha, fervi a água da chaleira e, quando voltei com a bandeja do mate, disse a Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos. Deixou cair o tricô e me olhou com os seus graves olhos cansados.
— Você tem certeza?
Disse que sim.
— Então – disse, recolhendo as agulhas – teremos que viver neste lado.
Sei que o conto costuma ser lido como uma alegoria do primeiro peronismo, quando a Argentina assistiu a uma perseguição feroz contra jornalistas e comunistas, o que levou o próprio Cortázar a buscar autoexílio em Paris. (Por aqui, tivemos Ciro Gomes; tristes trópicos, os nossos.) Mas eu, que nutro pouco respeito por biografias e, seguindo um ensinamento de Mariana Ruggieri, procuro ler onde o texto se trai, lembro que os irmãos eram desocupados rentistas, enriquecendo com o dinheiro que lhes chega do campo, e viviam numa casa que o narrador reconhece como excessivamente grande para apenas dois moradores. E ainda: a casa acabaria demolida em nome do lucro, por primos distantes que a herdassem ou, muito provavelmente, pelos próprios irmãos, “antes que fosse demasiado tarde”.
Testemunhamos o momento em que a casa, exausta da delicada exploração a que é submetida, decide experimentar a inversão das coisas e expulsar os parasitas enquanto há tempo. Cortázar nunca define bem os ruídos que vão obrigando o narrador e a irmã a irem fechando portas atrás de si, e é essa indeterminação que me permite ler esse fenômeno (espiritual?) como um refluxo contra hospedeiros até então cultivados sem grandes problemas.
A casa é tomada pela tosse.
Penso isso também pela reação espantosamente resignada dos irmãos. Retiram-se passo a passo, como se respeitassem ou esperassem a lógica daqueles acontecimentos. Já conviviam com a presença silenciosa do pó, essa memória de tudo o que toca naquilo que não tocamos. Ao fim, o narrador e Irene recolhem suas migalhas e abandonam a carcaça. O horror (esse rumor doméstico) se dá na percepção tardia de que nunca se possui uma casa (confira agora como anda o seu financiamento imobiliário de trinta anos).
Quando somos desalojados pelo hospedeiro que supomos obediente, descobrimos que o desamparo é uma realidade paupável. A inquietação se dá na própria ideia de permanência. Deslocados, compreendemos que a casa mais comum já anuncia seu estado de ruína e, portanto, mal-assombro. Ou seja, paradoxalmente, a casa mal-assombrada, sempre retratada como uma coisa meio ancestral, ensina que somos provisórios. Ela, por outro lado, mesmo depois de demolida, continuará em seu perpétuo estado de ruína em nossos pensamentos.
Diante dessa obstinada sobrevivência, o fantasma não é um intruso. Ora, somos nós que invadimos o corpo assombrado, com nossos espíritos descrentes e nosso senso de utilidade. É por isso que habitar implica compreender que a casa também precisa nos aceitar. Com ela, formamos um organismo vulnerável, complexo e cuja existência nos antecede. Todo morador, toda família, todo país herda um espaço que chega inevitavelmente marcado por camadas e mais camadas de um tempo que não é o nosso.
As pancadas nas paredes, os objetos que se deslocam por si mesmos, os copos que tilintam, as campainhas que tocam, todo esse conjunto de manifestações insólitas compõem uma espécie de didática. Na maioria dos casos, basta se afastar do poltergeist para que tudo entre em ordem, embora existam aqueles fantasmas que gostem de perseguir o atormentado. Mas prefiro pensar que aquilo que persiste é o desejo de continuar narrando. Fantasmas de casas mal-assombradas são as dívidas da matéria, e estão ali para que o espaço possa continuar contando sua longuíssima história.
Leiam A casa, da Natércia Campos.
Adorei tua interpretação do conto de Cortazar. Não conhecia esse vies. Eu sempre o uso como paralelo a outra casa assombrada que amamos: a de Usher.
Me lembra o espelhamento no romantismo: a percepção do ambiente tem relação com o psicológico do protagonista, pode ser a casa mais linda e "alegre" do mundo e ainda sim pode causar uma sensação de agonia.
O horror do cotidiano é uma das coisas que mais gosto de escrever e ler, Rinha de Galos da Ampuero trabalha tão bem a casa como um ambiente hostil pelas relações estabelecidas e moldadas nela.